Maria Aparecida tem 57 anos, vinte filhos, dezenove netos, cinco bisnetos e zero visitas – nem sequer um Sedex – nos últimos dois anos e oito meses. A experiência parece tê-la acostumado ao isolamento. Todas as mulheres no recinto se sentam em duplas ou trios, mas Maria não se importa com isso. Tem aquela postura de quem está solitária mesmo quando em companhia. Troca de lugar durante a cerimônia na penitenciária e vai se sentar sozinha. Não presta atenção no que está acontecendo à sua volta ou se concentra apenas em detalhes insignificantes.
– Já são dez pessoas com o sobrenome Silva – diz em voz alta para si mesma, rindo da coincidência.
De repente, repara na minha presença uma cadeira atrás. Aperta a ponta do dedo, observa o sangue voltar lento ao seu lugar e diz:
– Viu só? Diabetes.
Mostro-me interessada.
– Quase morri na semana passada, fui salva graças a uma ex-funcionária daqui. Como gosto dela!
E eu:
– Ex-funcionária? Ela não trabalha mais aqui, então?
– Sabe que não sei?
Curva o corpo para trás e deixa à mostra um olhar suplicante, uma pele maltratada e uma aparência de pelo menos dez anos a mais. Sinais de anos de lavoura e de estrada, dirigindo caminhões de transporte de boias-frias pelo interior de São Paulo. Sinais de partos diários que ela continuava tendo depois daqueles vinte, para dar à luz o sustento da família.
Como era comum entre as meninas de Ourinhos daquela época, casou-se aos catorze anos, com um japonês. Teve com ele dez filhos. Mais tarde eles se separaram e ela casou-se de novo, “mas dessa vez com um brasileiro” e teve mais dez.
– ...e tem a minha caçula. Ela tem dezessete anos e, graças a Deus, está na escola. Ela me escreve sempre, diz que tem saudades, que não vê a hora de me ver.
– E por que não vem visitar há tanto tempo?
– Ah, a menina corta cana. Não dá pra vir assim toda vez pra São Paulo, é caro!
Por um ano e meio, Maria esteve detida em São Pedro do Turvo, uma cidadezinha do interior de São Paulo onde moram 6.978 pessoas. E, por sua vontade, lá teria continuado pelo resto de sua pena, para ficar próxima à família, não fosse a Justiça ter determinado sua transferência para a Penitenciária Feminina da Capital, há 358 quilômetros e R$123,20 de distância. De lá foi trocando de penitenciária em penitenciária, sempre longe da família.
– Diziam que minha pena era muito grande pra ficar em São Pedro do Turvo até o fim.
Do crime ela não quer falar. Diz vagamente que o genro matou alguém e usou a casa dela pra se livrar do corpo.
A família é simples, uma maioria de trabalhadores rurais e boias-frias, que não conseguem dinheiro ou folga para visitá-la. Não têm condições de garantir o sustento dela lá dentro ou de mandar qualquer item de subsistência.
– Mas você recebe o kit de higiene aqui na Penitenciária, não é? Não te falta nada...
– Não falta nada? – e ela me olha de um jeito zombeteiro, ridicularizando a minha ingenuidade. – Tem dia que até saio recolhendo papel de jornal do chão para limpar a bunda!
Com o tempo, percebi que a história de Maria Aparecida era icônica. Casos assim acontecem porque, em vez de pequenas unidades distribuídas pelo Estado, as penitenciárias femininas paulistas são grandes e concentradas na região da Capital. Os transportes e hospedagem são caros e normalmente não existe ajuda do governo para que as visitas aconteçam. Muitas unidades, inclusive, impõem dificuldades, como limitar o número de crianças por visita. Além de impedir que os filhos encontrem a mãe todos juntos, em algumas situações a visita sequer acontece porque o responsável pelas crianças não tem com quem deixar os filhos que não entrarão.
Como resultado, muitas mulheres preferem cumprir o resto de suas penas em cadeias públicas e distritos policiais, em condições precárias de higiene e superlotação, mas perto de seus rebentos.
As cadeias públicas foram criadas para abrigar acusados durante o tempo em que eles respondem processo, o que deveria girar em torno de três meses. Não têm estruturas de saneamento básico para manter muitas pessoas, na maioria dos casos não têm camas, produtos de higiene, atendimento médico ou trabalho para ajudar na remissão da pena.
A maioria delas, por exemplo, não disponibiliza absorventes íntimos para as presas. Integrantes da Pastoral Carcerária chegam a contar casos em que mulheres que não tinham família ou amigas que pudessem ceder o produto passaram o mês todo acumulando miolo de pão para improvisar absorventes internos durante o período menstrual. Outras rasgam peças de roupa ou usam papel higiênico.
Nas Penitenciárias, a situação é um pouco melhor, mas ainda assim está longe da ideal. Cada mulher recebe por mês dois papéis higiênicos (o que pode ser suficiente para um homem, mas jamais para uma mulher, que o usa para duas necessidades distintas) e dois pacotes com oito absorventes cada. Ou seja, uma mulher com um período menstrual de quatro dias tem que se virar com dois absorventes ao dia; uma mulher com um período de cinco, com menos que isso.
– Todo mês eles dão um kit. No Butantã, dão dois papel higiênico, um sabonete, uma pasta de dente da pior qualidade, e um absorvente. Falta, né? E quem não tem família que manda tem que lavar a louça, lavar a roupa pra alguém porque ninguém dá nada pra ninguém – conta
Gardênia.
Itens de higiene se tornam mercadoria de troca para quem não tem visita. Algumas fazem faxina, lavam roupa ou oferecem serviços de manicure para barganhar shampoo, absorvente, sabão e peças de roupa. No regime semiaberto, só recebem o kit aquelas que não têm visita.
– É, no fechado eles passam jogando na cela, independente de visita. – diz
Júlia – No semiaberto, se eu for lá hoje a mulher vai falar: “toma vergonha na sua cara”. E se tiver dinheiro no pecúlio elas também não dão, só dão pra quem não tem dinheiro. E o fato de eu trabalhar no presídio não significa que eu não precise. De repente eu estou juntando aquele dinheiro para fazer não sei o quê pro filho. Principalmente estrangeira, como elas sofrem. Já morei com estrangeira que lavava uma roupa e rezava pra ela secar antes da outra sujar.
A falta de asseio nas celas também é um grande problema. As presas são responsáveis pela limpeza dos próprios dormitórios, então, normalmente são culpadas integralmente pela sujeira.
– Não adianta dizer que tem rato porque elas jogam o lixo no chão, porque também não existe a coleta daquele lixo. Não tem a higiene na latrina, nem educação sobre o tema. – me disse uma vez Sônia Drigo, uma advogada que faz parte do grupo de estudos Mulheres Encarceradas.
Quando existe algum caso de doença contagiosa ou epidemia, os pequenos distritos policiais não sabem o que fazer. Em 2009, quando explodiu o surto da gripe H1N1, os jornais da região de Votorantin anunciaram que três presas com suspeita da doença estavam isoladas no banheiro de uma delegacia. Quando
Heidi, da Pastoral Carcerária, foi ao local verificar o caso, o delegado lhe disse:
– Bom, não é ideal, mas que é que eu vou fazer? Tenho 200 pessoas num espaço de cinquenta e tenho três pessoas que preciso isolar – depois de ver o desespero do homem, ela ficou com a impressão de que era ele mesmo que, sem saber o que fazer, havia chamado a imprensa.
Nos presídios masculinos, situações do tipo são causa de rebeliões contínuas. Eles metem medo, exigem direitos. As mulheres são menos organizadas, mais passivas. Normalmente ficam em silêncio como outras Marias Aparecidas.