sexta-feira, 11 de novembro de 2011

Brigada com a morte

Fazia pouco menos de um ano que Camila estava na Penitenciária Feminina do Butantã quando a psicóloga da unidade a chamou para conversar pela primeira vez.

– Camila, você sabe que há três anos sua mãe é falecida?

– Sei.

– Então por que você continua colocando ela no seu rol de visitas?

– Porque ela me visita sempre. Eu sou assim: sou brigada com a morte.

sexta-feira, 28 de outubro de 2011

Vinte rebentos

Maria Aparecida tem 57 anos, vinte filhos, dezenove netos, cinco bisnetos e zero visitas – nem sequer um Sedex – nos últimos dois anos e oito meses. A experiência parece tê-la acostumado ao isolamento. Todas as mulheres no recinto se sentam em duplas ou trios, mas Maria não se importa com isso. Tem aquela postura de quem está solitária mesmo quando em companhia. Troca de lugar durante a cerimônia na penitenciária e vai se sentar sozinha. Não presta atenção no que está acontecendo à sua volta ou se concentra apenas em detalhes insignificantes.

– Já são dez pessoas com o sobrenome Silva – diz em voz alta para si mesma, rindo da coincidência.

De repente, repara na minha presença uma cadeira atrás. Aperta a ponta do dedo, observa o sangue voltar lento ao seu lugar e diz:

– Viu só? Diabetes.

Mostro-me interessada.

– Quase morri na semana passada, fui salva graças a uma ex-funcionária daqui. Como gosto dela!

E eu:

– Ex-funcionária? Ela não trabalha mais aqui, então?

– Sabe que não sei?

Curva o corpo para trás e deixa à mostra um olhar suplicante, uma pele maltratada e uma aparência de pelo menos dez anos a mais. Sinais de anos de lavoura e de estrada, dirigindo caminhões de transporte de boias-frias pelo interior de São Paulo. Sinais de partos diários que ela continuava tendo depois daqueles vinte, para dar à luz o sustento da família.

Como era comum entre as meninas de Ourinhos daquela época, casou-se aos catorze anos, com um japonês. Teve com ele dez filhos. Mais tarde eles se separaram e ela casou-se de novo, “mas dessa vez com um brasileiro” e teve mais dez.

– ...e tem a minha caçula. Ela tem dezessete anos e, graças a Deus, está na escola. Ela me escreve sempre, diz que tem saudades, que não vê a hora de me ver.

– E por que não vem visitar há tanto tempo?

– Ah, a menina corta cana. Não dá pra vir assim toda vez pra São Paulo, é caro!

Por um ano e meio, Maria esteve detida em São Pedro do Turvo, uma cidadezinha do interior de São Paulo onde moram 6.978 pessoas. E, por sua vontade, lá teria continuado pelo resto de sua pena, para ficar próxima à família, não fosse a Justiça ter determinado sua transferência para a Penitenciária Feminina da Capital, há 358 quilômetros e R$123,20 de distância. De lá foi trocando de penitenciária em penitenciária, sempre longe da família.

– Diziam que minha pena era muito grande pra ficar em São Pedro do Turvo até o fim.

Do crime ela não quer falar. Diz vagamente que o genro matou alguém e usou a casa dela pra se livrar do corpo.

A família é simples, uma maioria de trabalhadores rurais e boias-frias, que não conseguem dinheiro ou folga para visitá-la. Não têm condições de garantir o sustento dela lá dentro ou de mandar qualquer item de subsistência.

– Mas você recebe o kit de higiene aqui na Penitenciária, não é? Não te falta nada...

– Não falta nada? – e ela me olha de um jeito zombeteiro, ridicularizando a minha ingenuidade. – Tem dia que até saio recolhendo papel de jornal do chão para limpar a bunda!

Com o tempo, percebi que a história de Maria Aparecida era icônica. Casos assim acontecem porque, em vez de pequenas unidades distribuídas pelo Estado, as penitenciárias femininas paulistas são grandes e concentradas na região da Capital. Os transportes e hospedagem são caros e normalmente não existe ajuda do governo para que as visitas aconteçam. Muitas unidades, inclusive, impõem dificuldades, como limitar o número de crianças por visita. Além de impedir que os filhos encontrem a mãe todos juntos, em algumas situações a visita sequer acontece porque o responsável pelas crianças não tem com quem deixar os filhos que não entrarão.

Como resultado, muitas mulheres preferem cumprir o resto de suas penas em cadeias públicas e distritos policiais, em condições precárias de higiene e superlotação, mas perto de seus rebentos.

As cadeias públicas foram criadas para abrigar acusados durante o tempo em que eles respondem processo, o que deveria girar em torno de três meses. Não têm estruturas de saneamento básico para manter muitas pessoas, na maioria dos casos não têm camas, produtos de higiene, atendimento médico ou trabalho para ajudar na remissão da pena.

A maioria delas, por exemplo, não disponibiliza absorventes íntimos para as presas. Integrantes da Pastoral Carcerária chegam a contar casos em que mulheres que não tinham família ou amigas que pudessem ceder o produto passaram o mês todo acumulando miolo de pão para improvisar absorventes internos durante o período menstrual. Outras rasgam peças de roupa ou usam papel higiênico.

Nas Penitenciárias, a situação é um pouco melhor, mas ainda assim está longe da ideal. Cada mulher recebe por mês dois papéis higiênicos (o que pode ser suficiente para um homem, mas jamais para uma mulher, que o usa para duas necessidades distintas) e dois pacotes com oito absorventes cada. Ou seja, uma mulher com um período menstrual de quatro dias tem que se virar com dois absorventes ao dia; uma mulher com um período de cinco, com menos que isso.

– Todo mês eles dão um kit. No Butantã, dão dois papel higiênico, um sabonete, uma pasta de dente da pior qualidade, e um absorvente. Falta, né? E quem não tem família que manda tem que lavar a louça, lavar a roupa pra alguém porque ninguém dá nada pra ninguém – conta Gardênia.

Itens de higiene se tornam mercadoria de troca para quem não tem visita. Algumas fazem faxina, lavam roupa ou oferecem serviços de manicure para barganhar shampoo, absorvente, sabão e peças de roupa. No regime semiaberto, só recebem o kit aquelas que não têm visita.

É, no fechado eles passam jogando na cela, independente de visita. – diz Júlia – No semiaberto, se eu for lá hoje a mulher vai falar: “toma vergonha na sua cara”. E se tiver dinheiro no pecúlio elas também não dão, só dão pra quem não tem dinheiro. E o fato de eu trabalhar no presídio não significa que eu não precise. De repente eu estou juntando aquele dinheiro para fazer não sei o quê pro filho. Principalmente estrangeira, como elas sofrem. Já morei com estrangeira que lavava uma roupa e rezava pra ela secar antes da outra sujar.

A falta de asseio nas celas também é um grande problema. As presas são responsáveis pela limpeza dos próprios dormitórios, então, normalmente são culpadas integralmente pela sujeira. 

– Não adianta dizer que tem rato porque elas jogam o lixo no chão, porque também não existe a coleta daquele lixo. Não tem a higiene na latrina, nem educação sobre o tema. – me disse uma vez Sônia Drigo, uma advogada que faz parte do grupo de estudos Mulheres Encarceradas.

Quando existe algum caso de doença contagiosa ou epidemia, os pequenos distritos policiais não sabem o que fazer. Em 2009, quando explodiu o surto da gripe H1N1, os jornais da região de Votorantin anunciaram que três presas com suspeita da doença estavam isoladas no banheiro de uma delegacia. Quando Heidi, da Pastoral Carcerária, foi ao local verificar o caso, o delegado lhe disse:

– Bom, não é ideal, mas que é que eu vou fazer? Tenho 200 pessoas num espaço de cinquenta e tenho três pessoas que preciso isolar – depois de ver o desespero do homem, ela ficou com a impressão de que era ele mesmo que, sem saber o que fazer, havia chamado a imprensa.

Nos presídios masculinos, situações do tipo são causa de rebeliões contínuas. Eles metem medo, exigem direitos. As mulheres são menos organizadas, mais passivas. Normalmente ficam em silêncio como outras Marias Aparecidas.

sexta-feira, 7 de outubro de 2011

Porta de cadeia

– Dá até pra fazer uma estatística: 70% das que estão presas é por causa do namorado ou do marido. Elas conhecem eles e é assim: o homem é o bonitão, ladrão, legalzão. Mas depois a maioria delas, além de ir pra cadeia por causa deles, eles abandonam e acham outra mulher lá fora – diz Cristal.

– E elas são capazes de sair da cadeia e voltar pra eles de novo. Ou ficar na porta de outra cadeia, visitando – Júlia acrescenta com ar deexperiência.

Camila completa:

E elas têm a visão que na cadeia tratam elas maravilhosamente bem, mas não é assim. É que lá é uma vez por semana, e lá eles não tem nada.

quinta-feira, 29 de setembro de 2011

Dizeres

Leio em voz alta a inscrição da fachada da frente da Penitenciária de Sant’Anna:

– “Aqui o trabalho, a disciplina e a bondade resgatam a falta cometida e reconduzem o homem à comunhão social.”

No final da frase, uma funcionária cochicha ao meu ouvido:

– Mentira...

sexta-feira, 16 de setembro de 2011

Delitos de mulher

Quando a penitenciária feminina de Franco da Rocha estava para ser desativada e reaberta como uma unidade masculina, a Secretaria de Administração Penitenciária pediu às presas que devolvessem seus uniformes, para que eles fossem reutilizados pelos novos internos. Cada uma delas, quando entrara ali, havia recebido o mesmo uniforme que era distribuído nas penitenciárias masculinas: uma calça larga da cor escolhida para representar aquela unidade (às vezes marrom, às vezes amarelo, outras azul) e uma camiseta branca. Uma vez que a diretora pôs as mãos nos uniformes devolvidos, percebeu o engano da Secretaria. Aquelas roupas jamais poderiam ser usadas por homens. As presas haviam personalizado cada peça com bordados, apliques e desenhos. Mesmo em um ambiente que as tratava como homens, sua feminilidade gritava nos detalhes, como um lembrete.

Um olhar mais atento encontraria ainda mais particularidades, a começar pelas razões pelas quais são detidas. Uma mulher dificilmente toma o papel principal em um crime. Ela trabalha em grupo ou em duplas, normalmente incentivada pelo parceiro ou filho. Em crimes violentos, suas motivações são passionais. “Às vezes elas têm histórias de abuso na adolescência, por parte de pai e mãe, e repetem a mesma história de vida com o marido e chegam a esse ponto. Fora esses casos extremos, é difícil uma mulher entrar para o mundo do crime isoladamente. O mais comum é atuarem no papel de parceiras”, diz uma psicóloga da Penitenciária Feminina do Butantã[1].

A detenta-padrão de hoje é jovem (49% tem menos de trinta anos), afro-descendente (54%), mãe solteira, e abandonada. A vasta maioria, 66%, era responsável, sozinha, pela criação dos filhos antes de ser presa. Essa, talvez, seja parte da razão pela qual a maior parte delas esteja condenada por tráfico de drogas, o que pode funcionar como complemento de renda em uma família monoparental. O Censo Penitenciário de 2002[2] apontou que 44% das mulheres encarceradas respondem por este tipo de delito (entre os homens, o número é 18%). O segundo crime mais comum, e para o qual vale o mesmo raciocínio, é o roubo, 40%.

Existe uma carência gigantesca de dados a respeito do universo feminino nos presídios. Os mais atuais datam de 2007[3]. Nesse ano, o Estado de São Paulo tinha 6.531 mulheres sob custódia, mas o número vem crescendo a um ritmo alucinado. Enquanto a criminalidade entre os homens aumenta 24,87% a cada quatro anos, entre as mulheres ela cresce a uma velocidade de 37,47%. Uma tese em voga entre ativistas da área é a de que a emancipação da mulher como chefe da casa tem aumentado a pressão financeira sobre elas e levado mais mulheres ao crime no decorrer dos anos.

O Estado não está preparado para esse crescimento. Em uma tentativa de acompanhar o processo, tem usado antigas penitenciárias masculinas para abrigar mulheres. Em alguns casos, faz com que elas passem por pequenas adaptações; em outros, troca apenas a cor das paredes. Isso não tem sido suficiente qualitativa ou numericamente. A grande maioria das mulheres, hoje, cumpre pena em lugar inadequado, como delegacias de polícia ou cadeias públicas. Ao contrário das penitenciárias, esses estabelecimentos, em que aproximadamente 25% delas estão alojadas, não têm camas, oficinas de trabalho, ou sequer condições sanitárias adequadas (é comum faltar água até mesmo para a descarga). Neles, um grande número de mulheres fica entulhado em celas minúsculas, que só estão preparadas para abrigar temporariamente um ser humano. Enquanto isso, só 13% dos homens passam por tal situação.


As mazelas físicas são, porém, as menos significativas para essas mulheres. O maior de todos os problemas dessa população é o abandono. A fila da visita em um presídio feminino é uma série de outros rostos femininos abatidos de mães, irmãs e filhas. A cada cem detentas, somente dezessete são visitadas pelo cônjuge ou parceiro; 36 não recebem qualquer tipo de visita e onze têm menos de uma visita por mês. No universo masculino, a cena é muito diferente: 65,2% recebem visitas das companheiras e são 29,2% os que não recebem visita nenhuma. Seria a fidelidade uma qualidade feminina?
Quando detidas, seus filhos são distribuídos entre parentas e instituições. Só 19,5% dos pais assumem a guarda das crianças. Os avós maternos cuidam dos filhos em 39,9% dos casos, 2,2% deles vão para orfanatos, 1,6% acabam presos e 0,9% internos da Fundação Casa. A pena de uma mulher é, quase sempre, uma pena compartilhada.


[1] Essa declaração aparece no livro Direitos Humanos e Mulheres Encarceradas (Publicado pela Organização Caroline Howard – São Paulo: Instituto Terra, Trabalho e Cidadania; Pastoral Carcerária do Estado de São Paulo, 2006), que não revela o nome da pscióloga.
[2] Infelizmente, os dados a respeito do universo feminino nas penitenciárias são muito antigos e carecemos de estudos mais recentes sobre esses dados especificamente.
[3] Fonte: Relatório Final do Grupo de Trabalho Interministerial – Reorganização e reformulação do sistema prisional feminino (Governo Federal, dezembro de 2007).