segunda-feira, 16 de janeiro de 2012

Mulheres tabu


“Os crimes violentos são um tabu dentro dos presídios femininos. Quem cometeu não admite, não quer contar. (...) Para se ter uma ideia, homicídios qualificados – como, por exemplo, pagar para alguém ser morto – dão até trinta anos de prisão. O Departamento de Homicídios e de Proteção à Pessoa da Polícia Civil do Estado de São Paulo afirma que, no ano 2000, aconteceram 5.000 homicídios na Capital. Mais de setecentos casos foram analisados e 125 tiveram a autoria estabelecida, sendo que alguns deles foram cometidos por mais de uma pessoa. ‘Posso lhe afirmar que 138 autores são do sexo masculino e apenas um do sexo feminino’, declarou o diretor do Departamento, Domingos Paulo Neto. ‘Ou seja, 0,7% dos casos analisados foram atribuídos a mulheres e 97,2% a homens. Então a mulher, nesse universo analisado, não chegou a 1%. Mas, mesmo que a mulher não seja autora do crime, ela pode ter outro tipo de participação. Dizem que a mulher não pratica o homicídio, ela manda praticar. Principalmente nos casos passionais’, diz Neto.”


Do livro Direitos Humanos e Mulheres Encarceradas, 
Org. Caroline Howard, 2006.

quinta-feira, 12 de janeiro de 2012

Biblioteca


Na Penitenciária de Sant’Anna, os livros mais procurados são os romances românticos. Também existe um gosto especial pelos espíritas de auto-ajuda (Zíbia Gasparetto tem um reduto de fãs por ali). E, às vezes, desaparece um exemplar ou outro das duas obras prediletas: Estação Carandiru, do médico Drauzio Varella, e Diário de um Detento, do ex-presidiário Josemir José Fernandes Prado. Cada detenta tem dez dias para devolver os empréstimos – prazo cobrado à risca para evitar o roubo de exemplares e devidamente anotado em um caderno brochura de capa infantil, na caprichosa letra de Érika, a presa responsável pela biblioteca.

Érika adora trabalhar ali. Pode ler e dar vazão ao seu lado “universitária de pedagogia” – esquecido desde que foi presa, há dois meses. Tem mesmo o desenho de uma professora infantil. Os cabelos curtos e loiros estão presos numa trança embutida, ela tem gestos meigos, uma aparência paciente, olhos espertos e um sorriso discreto.

Em um tempo nada distante, Érika tinha uma vida muito diferente. Trabalhava durante o dia, estudava na Uniban pelas noites e voltava para casa para o marido e sua filhinha deficiente mental. Também não muito distante da realidade de muitas mulheres que não vão ter um fim como o dela, um dia Érika descobriu que estava sendo traída. Não podia mais suportar viver com ele. E mesmo que isso significasse ter que cuidar sozinha da filha deficiente, pediu que ele procurasse outro lugar pra morar.

Não foi suficiente para a amante. Ela continuava a provocar ciúmes, deixando recados agressivos no Orkut de Érika e fazendo ligações para sua menina. Chegou o dia em que Érika decidiu dar um basta naquilo. Ligou para a mãe da amante, que pediu que Érika fosse à sua casa, para conversarem pessoalmente sobre o assunto. Foi. Logo na esquina, a amante a esperava, escondida, com um canivete, que atirou ao seu pescoço. Érika teve uma reação rápida, revidou. As duas entraram em uma disputa corporal pela arma. Socos, empurrões, puxões de cabelo. Érika conseguiu dominar o canivete.

É difícil imaginar o que deve ter passado na mente dela naquele momento. Não aparenta ser uma pessoa de natureza agressiva. Talvez não tenha passado nada. Talvez Érika não tenha tido tempo nem de refletir antes de deixar a raiva fluir e encher o canivete no corpo da outra. Dormiu com seu marido. Deixou recados humilhantes no seu Orkut. Infernizou sua filha doente. O canivete entra mais fundo. Tentou feri-la (ou, quem sabe matá-la!) com um canivete. Atacou-a de surpresa.  Maldita!

Em algum momento entre a raiva e a reflexão, Érika deixou o canivete, largou a moça e partiu. Ela não morreu, mas o corte foi profundo. Profundo o bastante para eliminar a hipótese de legítima defesa e condenar Érika a dois anos de cadeia.

– A juíza diz que eu fui desmedida, que o corte não foi equivalente à agressão. Ela pode ter alguma razão. Mas tudo que eu sabia na hora é que aquele canivete estaria no meu pescoço – e segura a garganta.

Às vezes, Érika tem crises de rinite alérgica. Um pouco disso é por manejar livros velhos – alguns rasgados e quase mofados – que são doados ao presídio. Mas um outro tanto acontece porque a biblioteca tem infiltrações por todos os lados. No topo da sala úmida, próximo ao teto, existem manchas de musgos esverdeados quase do tamanho de uma pessoa. E a situação não muda muito quando Érika desce os degraus e passa pelas oficinas de trabalho onde algumas garotas têm ofícios não tão bons quanto o dela. Logo ao pé da escada, algumas delas passam o dia contando talheres plásticos da marca Plastilânia e embalando-os. Um. Dois. Três. Quatro. Cinco. Seis. Sete. Oito. Nove. Dez. Fecha a embalagem. E de novo. Sem luvas higiênicas ou encosto nas cadeiras.

Um pouco adiante, presas separam fios para uso mecânico. A iluminação é melhor e os encostos também, mas algumas têm que se sentar sobre cadeiras empilhadas para ajustá-las à altura certa. 

Para a maioria das detentas, trabalhar é um privilégio. Permite que ocupem a cabeça, mandem dinheiro para casa e, a cada três dias trabalhados, redimam um da pena. Porém, só 3%, mais ou menos, têm a “regalia” – que é garantida por Lei – às demais resta a esperança da lista de chamada.

– Eu e meu marido estamos os dois presos há anos e eu não aceito nada que minha família mande. Não é certo tirar dos meus três filhos pra dar pra mim. Na verdade, dou graças a Deus que posso trabalhar, que assim posso me sustentar e também mandar uma parte pra ajudar minha mãe a cuidar das crianças – contou certa vez uma mulher negra muito bonita, de uns trinta e poucos anos, que trabalhava na oficina de artesanato. Como ela, 58% das mulheres presas que trabalham enviam dinheiro para a família; entre os homens, o número é 27%.

Essa oficina da Fundação de Amparo ao Preso está no caminho de Érika para sua cela. É uma antiga capela em que cortinas brancas escondem as manchas da umidade e bonecas loiras e flores artificiais tentam dar um ar de feminilidade. Depois de passar por ela, Érika envereda por um corredor abafado para chegar ao seu destino.

Tanto no pavilhão onde ela mora quanto nos dois outros, as paredes são brancas, as portas das celas azuis e grande parte do ambiente é decorado com desenhos de corações e pessoas de roupas coloridas, que as presas fazem nas paredes. Algumas ganham frases de efeito e consolo também. Para o Dia das Mães, por exemplo, elas gravaram na entrada de um dos pavilhões a sentença “mãe: amor incondicional”. Outras vezes, são mensagens de fé.

A religião ali, assim como nos presídios masculinos, desempenha dois papéis importantes. O de redenção e refúgio das presas – que, algumas vezes, decidem mudar de vida, influenciadas pelos ensinamentos evangélicos – e o de refúgio físico de fato, porque “o PCC não agride gente evangélica”. No intervalo entre as nove da manhã e as cinco da tarde, em que as celas ficam abertas, não é raro encontrar um grande número de presas em roda, às vezes de mãos dadas, cantando hinos evangélicos em voz alta e de olhos cerrados.

Para presas com indicação médica, existe também uma academia para passar o tempo, perder peso e fazer fisioterapia. Ali era o antigo cinema, da época em que o presídio abrigava homens. Os equipamentos doados são poucos, mas bem conservados, e elas têm a ajuda umas das outras e de uma instrutora. 

Não existem muitas deficientes físicas em Sant’Anna, mas as poucas que moram ali não contam com instalações adaptadas e dependem dos cuidados da companheira de cela que, por sorte, são muito prestativas com aquelas que têm necessidades especiais.

Para pequenos problemas de saúde, no térreo, logo na entrada de cada pavilhão, existe uma pequena enfermaria cuidada por detentas que têm curso de enfermagem.

Passando por ela, Érika chega à cela miúda e vai ler na sua cama de concreto no chão. Como ela, a maioria das cerca de 2.700 mulheres que ali vive divide sua cela com uma acompanhante – com exceção das poucas universitárias e daquelas que estão sozinhas no castigo. Em cada lado há uma cama baixa com um colchão, duas pequenas mesinhas para colocar a televisão – se a família doar uma – e alguns alimentos. A uma passada das camas está o banheiro, que consiste em um vaso sanitário, uma pia e um chuveiro. Não tem portas, apenas uma muretinha até quase a altura da cintura. Quando tomam banho ou fazem suas necessidades, se as celas já estiverem trancadas, elas são obrigadas a fazer isso uma diante da outra. 

Certa vez, uma das celas tinha uma grande quantidade de fezes no vaso, ao mesmo tempo em que frutas eram descascadas na mesinha. O cheiro era nauseante.  A moradora do local, porém, parecia estar habituada. E quando uma visitante elogiou a beleza das cortinas na janela, ela disse, orgulhosa: “Gostou da arrumação? Eu mesma que limpei a cela!”.

Os dormitórios têm bolores quase tão grandes quanto os do ambiente de trabalho de Érika, o que não ajuda muito sua rinite. Os corredores centenários são escuros, úmidos e frios. Mas, na biblioteca, Érika e as outras continuam encontrando romances de finais felizes – e com palácios sem infiltração.

quarta-feira, 11 de janeiro de 2012

Inocente II


Uma vez a Camila me disse:


– Depois que você vai presa, pode implorar, chorar, que ninguém acredita que você é inocente. Que nem aquela menina outro dia, que foi presa porque “deu mamadeira com droga pro bebê”. Aí quando descobriram que não era droga, era amoxilina, ela já tinha quase morrido na cadeia, já tinha ficado cega de tanto as meninas baterem. E ele nem morreu da amoxilina, morreu da doença que ela tava tratando com amoxilina. 


Ela falava pra elas assim: “nem eu uso droga, como eu ai dar pro meu filho? Nunca, nunca!”. E elas não queriam saber, batiam. Estouraram os tímpanos dela. Eu entrei em pânico de ver aquele desespero dela. E você pode gritar “não fui eu, não fui eu”. E ninguém acredita. As presas e os policiais. Ninguém. E ela era inocente. 

terça-feira, 10 de janeiro de 2012

Inocente


– Sabe, Heidi, eu escuto tantas histórias. As presas sempre se justificam, e eu fico sem saber quando posso acreditar.


– Quando pode acreditar totalmente? Nunca. Existem muitas verdades no mundo: a verdade da presa, a verdade do juiz, a verdade da vítima. E não é que ela está mentindo, mas é que na cabeça dela aquilo é verdade. É a verdade da qual ela se convenceu.


Outro dia tive uma conversa que achei fascinante, com uma moça que está respondendo por sequestro. Ela disse: 


“Não, eu tenho fé que vou embora quando chegar o julgamento.”


“Por quê?”


“Porque eu já estou há sete meses aqui, mas eu não fiz o sequestro.” 


“Qual foi sua parte, então?”


“Ah, eu dei café da manhã, às vezes falava com a vítima, mas ela não pode me reconhecer.”


Claro que podia, reconhecer a voz, o corpo. “Mas eu não sequestrei”, ela dizia. Porque, na cabeça dela, o sequestro aconteceu na hora que pegaram a mulher e colocaram no cativeiro. E eu falei: 


“Mas a mulher ficou quanto tempo com vocês?”


“Seis meses.”


“Você percebe que essa mulher vai carregar isso para o resto da vida? E que a família também ficou traumatizada por seis meses sem saber nada dela? Você tem filhos?


“Tenho.”


“E se alguém fizesse isso com um dos seus filhos?”


“Ah! Eu me mataria.” 


E quer saber? Ainda assim se achava inocente do sequestro.