Na Penitenciária de
Sant’Anna, os livros mais procurados são os romances
românticos. Também existe um gosto especial pelos espíritas de auto-ajuda (Zíbia
Gasparetto tem um reduto de fãs por ali). E, às vezes, desaparece um exemplar
ou outro das duas obras prediletas: Estação
Carandiru, do médico Drauzio Varella, e Diário
de um Detento, do
ex-presidiário Josemir José Fernandes Prado. Cada detenta tem dez dias para
devolver os empréstimos – prazo cobrado à risca para evitar o roubo de
exemplares e devidamente anotado em um caderno brochura de capa infantil, na
caprichosa letra de Érika, a
presa responsável pela biblioteca.
Érika adora trabalhar ali. Pode ler e dar
vazão ao seu lado “universitária de pedagogia” – esquecido desde que foi presa,
há dois meses. Tem mesmo o desenho de uma professora infantil. Os cabelos
curtos e loiros estão presos numa trança embutida, ela tem gestos meigos, uma
aparência paciente, olhos espertos e um sorriso discreto.
Em um tempo nada distante, Érika tinha uma vida muito diferente.
Trabalhava durante o dia, estudava na Uniban pelas noites e voltava para casa
para o marido e sua filhinha deficiente mental. Também não muito distante da
realidade de muitas mulheres que não vão ter um fim como o dela, um dia Érika descobriu que estava sendo traída. Não
podia mais suportar viver com ele. E mesmo que isso significasse ter que cuidar sozinha da filha deficiente, pediu que ele
procurasse outro lugar pra morar.
Não foi suficiente para a
amante. Ela continuava a provocar ciúmes, deixando recados agressivos no Orkut
de Érika e fazendo ligações para sua menina.
Chegou o dia em que Érika decidiu dar um basta naquilo. Ligou
para a mãe da amante, que pediu que Érika fosse à sua casa, para conversarem
pessoalmente sobre o assunto. Foi. Logo na esquina, a amante a esperava,
escondida, com um canivete, que atirou ao seu pescoço. Érika teve uma reação rápida, revidou. As
duas entraram em uma disputa corporal pela arma. Socos, empurrões, puxões de
cabelo. Érika conseguiu dominar o canivete.
É difícil imaginar o que
deve ter passado na mente dela naquele momento. Não aparenta ser uma pessoa de
natureza agressiva. Talvez não tenha passado nada. Talvez Érika não tenha tido tempo nem de refletir
antes de deixar a raiva fluir e encher o canivete no corpo da outra. Dormiu com seu marido.
Deixou recados humilhantes no seu Orkut. Infernizou sua filha doente. O canivete entra mais fundo. Tentou feri-la (ou, quem sabe
matá-la!) com um canivete. Atacou-a de surpresa. Maldita!
Em algum momento entre a
raiva e a reflexão, Érika deixou o canivete, largou a moça e
partiu. Ela não morreu, mas o corte foi profundo. Profundo o bastante para
eliminar a hipótese de legítima defesa e condenar Érika a dois anos de cadeia.
– A juíza diz que eu fui
desmedida, que o corte não foi equivalente à agressão. Ela pode ter alguma
razão. Mas tudo que eu sabia na hora é que aquele canivete estaria no meu
pescoço – e segura a garganta.
Às vezes, Érika tem crises de rinite alérgica. Um
pouco disso é por manejar livros velhos – alguns rasgados e quase mofados – que
são doados ao presídio. Mas um outro tanto acontece porque a biblioteca tem
infiltrações por todos os lados. No topo da sala úmida, próximo ao teto,
existem manchas de musgos esverdeados quase do tamanho de uma pessoa. E a
situação não muda muito quando Érika desce os degraus e passa pelas
oficinas de trabalho onde algumas garotas têm ofícios não tão bons quanto o
dela. Logo ao pé da escada, algumas delas passam o dia contando talheres
plásticos da marca Plastilânia e embalando-os. Um. Dois. Três. Quatro. Cinco.
Seis. Sete. Oito. Nove. Dez. Fecha a embalagem. E de novo. Sem luvas higiênicas
ou encosto nas cadeiras.
Um pouco adiante, presas
separam fios para uso mecânico. A iluminação é melhor e os encostos também, mas
algumas têm que se sentar sobre cadeiras empilhadas para ajustá-las à altura
certa.
Para a maioria das
detentas, trabalhar é um privilégio. Permite que ocupem a cabeça, mandem
dinheiro para casa e, a cada três dias trabalhados, redimam um da pena. Porém,
só 3%, mais ou menos, têm a “regalia” – que é garantida por Lei – às demais
resta a esperança da lista de chamada.
– Eu e meu marido estamos
os dois presos há anos e eu não aceito nada que minha família mande. Não é
certo tirar dos meus três filhos pra dar pra mim. Na verdade, dou graças a Deus
que posso trabalhar, que assim posso me sustentar e também mandar uma parte pra
ajudar minha mãe a cuidar das crianças – contou certa vez uma mulher negra
muito bonita, de uns trinta e poucos anos, que trabalhava na oficina de
artesanato. Como ela, 58% das mulheres presas que trabalham enviam dinheiro
para a família; entre os homens, o número é 27%.
Essa oficina da Fundação
de Amparo ao Preso está no caminho de Érika para sua cela. É uma antiga capela
em que cortinas brancas escondem as manchas da umidade e bonecas loiras e
flores artificiais tentam dar um ar de feminilidade. Depois de passar por ela,
Érika envereda por um corredor abafado para chegar ao seu destino.
Tanto no pavilhão onde ela
mora quanto nos dois outros, as paredes são brancas, as portas das celas azuis
e grande parte do ambiente é decorado com desenhos de corações e pessoas de
roupas coloridas, que as presas fazem nas paredes. Algumas ganham frases de
efeito e consolo também. Para o Dia das Mães, por exemplo, elas gravaram na
entrada de um dos pavilhões a sentença “mãe: amor incondicional”. Outras vezes,
são mensagens de fé.
A religião ali, assim como
nos presídios masculinos, desempenha dois papéis importantes. O de redenção e
refúgio das presas – que, algumas vezes, decidem mudar de vida, influenciadas
pelos ensinamentos evangélicos – e o de refúgio físico de fato, porque “o PCC
não agride gente evangélica”. No intervalo entre as nove da manhã e as cinco da
tarde, em que as celas ficam abertas, não é raro encontrar um grande número de
presas em roda, às vezes de mãos dadas, cantando hinos evangélicos em voz alta
e de olhos cerrados.
Para presas com indicação
médica, existe também uma academia para passar o tempo, perder peso e fazer
fisioterapia. Ali era o antigo cinema, da época em que o presídio abrigava
homens. Os equipamentos doados são poucos, mas bem conservados, e elas têm a
ajuda umas das outras e de uma instrutora.
Não existem muitas
deficientes físicas em Sant’Anna, mas as poucas que moram ali não contam com
instalações adaptadas e dependem dos cuidados da companheira de cela que, por
sorte, são muito prestativas com aquelas que têm necessidades especiais.
Para pequenos problemas de
saúde, no térreo, logo na entrada de cada pavilhão, existe uma pequena
enfermaria cuidada por detentas que têm curso de enfermagem.
Passando por ela, Érika
chega à cela miúda e vai ler na sua cama de concreto no chão. Como ela, a
maioria das cerca de 2.700 mulheres que ali vive divide sua cela com uma
acompanhante – com exceção das poucas universitárias e daquelas que estão
sozinhas no castigo. Em cada lado há uma cama baixa com um colchão, duas
pequenas mesinhas para colocar a televisão – se a família doar uma – e alguns
alimentos. A uma passada das camas está o banheiro, que consiste em um vaso
sanitário, uma pia e um chuveiro. Não tem portas, apenas uma muretinha até
quase a altura da cintura. Quando tomam banho ou fazem suas necessidades, se as
celas já estiverem trancadas, elas são obrigadas a fazer isso uma diante da
outra.
Certa vez, uma das celas
tinha uma grande quantidade de fezes no vaso, ao mesmo tempo em que frutas eram
descascadas na mesinha. O cheiro era nauseante. A moradora do local, porém, parecia
estar habituada. E quando uma visitante elogiou a beleza das cortinas na
janela, ela disse, orgulhosa: “Gostou da arrumação? Eu mesma que limpei a
cela!”.
Os dormitórios têm bolores
quase tão grandes quanto os do ambiente de trabalho de Érika, o que não ajuda
muito sua rinite. Os corredores centenários são escuros, úmidos e frios. Mas, na biblioteca, Érika e as outras
continuam encontrando romances de finais felizes – e com palácios sem
infiltração.
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