quinta-feira, 12 de janeiro de 2012

Biblioteca


Na Penitenciária de Sant’Anna, os livros mais procurados são os romances românticos. Também existe um gosto especial pelos espíritas de auto-ajuda (Zíbia Gasparetto tem um reduto de fãs por ali). E, às vezes, desaparece um exemplar ou outro das duas obras prediletas: Estação Carandiru, do médico Drauzio Varella, e Diário de um Detento, do ex-presidiário Josemir José Fernandes Prado. Cada detenta tem dez dias para devolver os empréstimos – prazo cobrado à risca para evitar o roubo de exemplares e devidamente anotado em um caderno brochura de capa infantil, na caprichosa letra de Érika, a presa responsável pela biblioteca.

Érika adora trabalhar ali. Pode ler e dar vazão ao seu lado “universitária de pedagogia” – esquecido desde que foi presa, há dois meses. Tem mesmo o desenho de uma professora infantil. Os cabelos curtos e loiros estão presos numa trança embutida, ela tem gestos meigos, uma aparência paciente, olhos espertos e um sorriso discreto.

Em um tempo nada distante, Érika tinha uma vida muito diferente. Trabalhava durante o dia, estudava na Uniban pelas noites e voltava para casa para o marido e sua filhinha deficiente mental. Também não muito distante da realidade de muitas mulheres que não vão ter um fim como o dela, um dia Érika descobriu que estava sendo traída. Não podia mais suportar viver com ele. E mesmo que isso significasse ter que cuidar sozinha da filha deficiente, pediu que ele procurasse outro lugar pra morar.

Não foi suficiente para a amante. Ela continuava a provocar ciúmes, deixando recados agressivos no Orkut de Érika e fazendo ligações para sua menina. Chegou o dia em que Érika decidiu dar um basta naquilo. Ligou para a mãe da amante, que pediu que Érika fosse à sua casa, para conversarem pessoalmente sobre o assunto. Foi. Logo na esquina, a amante a esperava, escondida, com um canivete, que atirou ao seu pescoço. Érika teve uma reação rápida, revidou. As duas entraram em uma disputa corporal pela arma. Socos, empurrões, puxões de cabelo. Érika conseguiu dominar o canivete.

É difícil imaginar o que deve ter passado na mente dela naquele momento. Não aparenta ser uma pessoa de natureza agressiva. Talvez não tenha passado nada. Talvez Érika não tenha tido tempo nem de refletir antes de deixar a raiva fluir e encher o canivete no corpo da outra. Dormiu com seu marido. Deixou recados humilhantes no seu Orkut. Infernizou sua filha doente. O canivete entra mais fundo. Tentou feri-la (ou, quem sabe matá-la!) com um canivete. Atacou-a de surpresa.  Maldita!

Em algum momento entre a raiva e a reflexão, Érika deixou o canivete, largou a moça e partiu. Ela não morreu, mas o corte foi profundo. Profundo o bastante para eliminar a hipótese de legítima defesa e condenar Érika a dois anos de cadeia.

– A juíza diz que eu fui desmedida, que o corte não foi equivalente à agressão. Ela pode ter alguma razão. Mas tudo que eu sabia na hora é que aquele canivete estaria no meu pescoço – e segura a garganta.

Às vezes, Érika tem crises de rinite alérgica. Um pouco disso é por manejar livros velhos – alguns rasgados e quase mofados – que são doados ao presídio. Mas um outro tanto acontece porque a biblioteca tem infiltrações por todos os lados. No topo da sala úmida, próximo ao teto, existem manchas de musgos esverdeados quase do tamanho de uma pessoa. E a situação não muda muito quando Érika desce os degraus e passa pelas oficinas de trabalho onde algumas garotas têm ofícios não tão bons quanto o dela. Logo ao pé da escada, algumas delas passam o dia contando talheres plásticos da marca Plastilânia e embalando-os. Um. Dois. Três. Quatro. Cinco. Seis. Sete. Oito. Nove. Dez. Fecha a embalagem. E de novo. Sem luvas higiênicas ou encosto nas cadeiras.

Um pouco adiante, presas separam fios para uso mecânico. A iluminação é melhor e os encostos também, mas algumas têm que se sentar sobre cadeiras empilhadas para ajustá-las à altura certa. 

Para a maioria das detentas, trabalhar é um privilégio. Permite que ocupem a cabeça, mandem dinheiro para casa e, a cada três dias trabalhados, redimam um da pena. Porém, só 3%, mais ou menos, têm a “regalia” – que é garantida por Lei – às demais resta a esperança da lista de chamada.

– Eu e meu marido estamos os dois presos há anos e eu não aceito nada que minha família mande. Não é certo tirar dos meus três filhos pra dar pra mim. Na verdade, dou graças a Deus que posso trabalhar, que assim posso me sustentar e também mandar uma parte pra ajudar minha mãe a cuidar das crianças – contou certa vez uma mulher negra muito bonita, de uns trinta e poucos anos, que trabalhava na oficina de artesanato. Como ela, 58% das mulheres presas que trabalham enviam dinheiro para a família; entre os homens, o número é 27%.

Essa oficina da Fundação de Amparo ao Preso está no caminho de Érika para sua cela. É uma antiga capela em que cortinas brancas escondem as manchas da umidade e bonecas loiras e flores artificiais tentam dar um ar de feminilidade. Depois de passar por ela, Érika envereda por um corredor abafado para chegar ao seu destino.

Tanto no pavilhão onde ela mora quanto nos dois outros, as paredes são brancas, as portas das celas azuis e grande parte do ambiente é decorado com desenhos de corações e pessoas de roupas coloridas, que as presas fazem nas paredes. Algumas ganham frases de efeito e consolo também. Para o Dia das Mães, por exemplo, elas gravaram na entrada de um dos pavilhões a sentença “mãe: amor incondicional”. Outras vezes, são mensagens de fé.

A religião ali, assim como nos presídios masculinos, desempenha dois papéis importantes. O de redenção e refúgio das presas – que, algumas vezes, decidem mudar de vida, influenciadas pelos ensinamentos evangélicos – e o de refúgio físico de fato, porque “o PCC não agride gente evangélica”. No intervalo entre as nove da manhã e as cinco da tarde, em que as celas ficam abertas, não é raro encontrar um grande número de presas em roda, às vezes de mãos dadas, cantando hinos evangélicos em voz alta e de olhos cerrados.

Para presas com indicação médica, existe também uma academia para passar o tempo, perder peso e fazer fisioterapia. Ali era o antigo cinema, da época em que o presídio abrigava homens. Os equipamentos doados são poucos, mas bem conservados, e elas têm a ajuda umas das outras e de uma instrutora. 

Não existem muitas deficientes físicas em Sant’Anna, mas as poucas que moram ali não contam com instalações adaptadas e dependem dos cuidados da companheira de cela que, por sorte, são muito prestativas com aquelas que têm necessidades especiais.

Para pequenos problemas de saúde, no térreo, logo na entrada de cada pavilhão, existe uma pequena enfermaria cuidada por detentas que têm curso de enfermagem.

Passando por ela, Érika chega à cela miúda e vai ler na sua cama de concreto no chão. Como ela, a maioria das cerca de 2.700 mulheres que ali vive divide sua cela com uma acompanhante – com exceção das poucas universitárias e daquelas que estão sozinhas no castigo. Em cada lado há uma cama baixa com um colchão, duas pequenas mesinhas para colocar a televisão – se a família doar uma – e alguns alimentos. A uma passada das camas está o banheiro, que consiste em um vaso sanitário, uma pia e um chuveiro. Não tem portas, apenas uma muretinha até quase a altura da cintura. Quando tomam banho ou fazem suas necessidades, se as celas já estiverem trancadas, elas são obrigadas a fazer isso uma diante da outra. 

Certa vez, uma das celas tinha uma grande quantidade de fezes no vaso, ao mesmo tempo em que frutas eram descascadas na mesinha. O cheiro era nauseante.  A moradora do local, porém, parecia estar habituada. E quando uma visitante elogiou a beleza das cortinas na janela, ela disse, orgulhosa: “Gostou da arrumação? Eu mesma que limpei a cela!”.

Os dormitórios têm bolores quase tão grandes quanto os do ambiente de trabalho de Érika, o que não ajuda muito sua rinite. Os corredores centenários são escuros, úmidos e frios. Mas, na biblioteca, Érika e as outras continuam encontrando romances de finais felizes – e com palácios sem infiltração.

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